A Arte de Escutar - Alpino, Itália - 2ª palestra 4 de julho, 1933. / Jiddu Krishnamurti

Amigos, hoje vou falar sobre o que se chama evolução. É um assunto difícil de discutir e poderão interpretar mal o que vou dizer. Se não me compreenderem inteiramente, por favor coloquem depois as vossas questões.

Para a maioria de nós a ideia de evolução implica uma série de realizações, isto é, realizações nascidas da escolha contínua entre aquilo a que chamamos não essencial e o essencial. Implica deixar o não essencial e movimentar-se em direcção ao essencial. A esta série de contínuas realizações resultantes da escolha, chamamos evolução. Toda a nossa estrutura de pensamento está baseada na ideia de avanço e consecução espiritual, na ideia de se tornar cada vez mais essencial, como resultado de uma escolha contínua. Deste modo então, pensamos na acção como sendo apenas uma série de realizações, não é assim?

Quando consideramos o crescimento ou a evolução como uma série de realizações, naturalmente que as nossas acções nunca estão completas; crescem sempre do mais baixo para o mais alto, sempre em escalada, avançando. Por isso, se vivermos sob essa concepção, a nossa acção escraviza-nos; a nossa acção é um constante, interminável e infinito esforço e esse esforço está sempre voltado para uma segurança. Naturalmente, quando existe uma procura de segurança, existe o medo, e este medo cria a contínua consciência daquilo a que chamamos “eu”. Não é assim? As mentes da maior parte de nós estão aprisionadas por esta ideia de realização, consecução, subir mais e mais alto, isto é, pela ideia de escolher entre o essencial e o não essencial. E uma vez que esta escolha, este avanço a que chamamos acção, é apenas uma luta interminável, um esforço contínuo, as nossas vidas são também um esforço interminável e não um fluxo de acção livre e espontâneo.

Quero distinguir entre acção e realização ou consecução. A realização é uma finalidade, ao passo que a acção, para mim, é infinita. Compreenderão essa distinção à medida que eu for continuando. Mas primeiro compreendamos que isto é o que nós entendemos por evolução: um movimento contínuo através da escolha, em direcção ao que chamamos essencial, sempre procurando realizações cada vez maiores.


#A maior bem-aventurança – e para mim isto não é uma mera teoria – é viver sem esforço. Vou agora explicar o que entendo por esforço. Para a maioria de vocês, esforço é apenas escolha. Vivem da escolha; têm que escolher. Mas porque escolhem? Porque existe uma necessidade que os insta, que os impele, que os força a escolher? Eu digo que esta necessidade de escolha existe enquanto se for consciente do vazio e da solidão dentro de si mesmo; essa incompletude força-os a escolher, a fazer um esforço.

A questão é portanto não como preencher esse vazio, mas antes, qual é a causa desse vazio. Para mim, vazio é a acção nascida da escolha, procurando ganho. Quando uma acção nasce da escolha, dela resulta o vazio. E onde há vazio, surge a questão, “Como posso preencher esse vazio? Como me posso livrar dessa solidão, desse sentimento de incompletude?” Para mim, não é uma questão de preencher o vazio, porque jamais o poderão preencher. No entanto é o que a maioria das pessoas estão a tentar fazer. Através da sensação, da excitação, ou do prazer, através da ternura ou do esquecimento, estão a tentar preencher esse vazio, a tentar reduzir aquele sentimento de vazio. Mas nunca preencherão esse vazio, porque estão a tentar preenchê-lo com a acção nascida da escolha.

O vazio existe enquanto a acção se basear na escolha, gosto ou antipatia, atracção ou repulsão. Vocês escolhem porque não gostam disto e gostam daquilo; não estão satisfeitos com isto mas querem satisfazer-se com aquilo. Ou têm medo de alguma coisa e fogem dela. Para a maior parte das pessoas a acção baseia-se em atracção ou repulsão, e portanto no medo.

Então o que acontece quando põem de parte isto e escolhem aquilo? Estão a basear a vossa acção apenas na atracção ou repulsão, e desse modo estão a criar um oposto. Daí que exista esta escolha contínua que implica esforço. Enquanto fizerem uma escolha, enquanto a escolha existir, existe obrigatoriamente a dualidade. Podem pensar que escolheram o essencial; mas porque a vossa escolha nasceu da atracção e repulsão, carência e medo, apenas cria outro não essencial.

Isso é o que a vossa vida é. Um dia querem isto – escolhem-no porque gostam e querem-no porque lhes dá alegria e satisfação. No dia seguinte estão empanturrados disso; já não significa nada mais para vocês e põem-no de lado para escolher outra coisa. Portanto a vossa escolha baseia-se na sensação contínua; escolhem através da consciência da dualidade, e esta escolha apenas perpetua os opostos.

Enquanto escolherem entre opostos, não há discernimento, e por isso deve existir esforço, interminável esforço, e continuamente opostos e dualidade. A vossa escolha é, por isso, interminável, e o vosso esforço contínuo. A vossa acção é sempre finita, sempre em termos de realização, e por tal esse vazio que sentem existirá sempre. Mas se a mente estiver livre da escolha, se tiverem a capacidade de discernir, então a acção é infinita.

Explicarei isto de novo. Conforme disse, se disserem, “Eu quero esta coisa”, nessa escolha vocês criaram um oposto. De novo, após essa escolha vocês criam outro oposto, e portanto continuam de um oposto a outro através de um processo de esforço contínuo. Esse processo é a vossa vida, e há nisso luta e dor, conflito e sofrimento incessantes. Se se derem conta disso, se realmente sentirem com todo o vosso ser – isto é, emocional bem como mentalmente – a inutilidade da escolha, então deixarão de escolher; haverá então discernimento; haverá então resposta intuitiva que é livre da escolha, e isso é estar consciente.

Se estiverem conscientes de que a vossa escolha nascida de opostos cria apenas outro oposto, perceberão então o que é verdade. Mas a maioria de vocês não tem intensidade de desejo nem consciência, porque querem o oposto, porque querem sensação. Por isso nunca alcançam o discernimento; nunca alcançam essa consciência rica, plena, que libera a mente de opostos. Nessa liberdade de opostos, a acção já não é mais uma consecução, mas uma realização; nasce do discernimento que é infinito. A acção brota então da vossa própria plenitude, e em tal acção não existe escolha e por isso não há esforço.

Para conhecer tal plenitude, tal realidade, têm que estar num estado de total consciência, que só poderão alcançar quando são confrontados por uma crise. A maioria de vocês é confrontada por algum tipo de crise, relacionada com dinheiro, ou com pessoas, ou com amor, ou com a morte; quando são apanhados em tal crise têm de escolher, têm que decidir. Como é que decidem? A vossa decisão brota do medo, da necessidade, da sensação. Portanto estão apenas a protelar; estão a escolher o que é conveniente, o que é agradável, e por isso estão apenas a criar outra sombra através da qual têm que passar. Somente quando sentirem o absurdo da vossa existência presente, senti-la não apenas intelectualmente, mas com todo o vosso coração e toda a vossa mente – quando realmente sentirem o absurdo desta escolha contínua – então dessa consciência nasce o discernimento. Então não escolhem: actuam. É fácil dar exemplos, mas não darei nenhum, já que muitas vezes são confusos.

Portanto para mim, a consciência não resulta da luta para ser consciente; ela chega de moto próprio quando estão consciente com todo o vosso ser, quando compreendem a inutilidade da escolha. Presentemente escolhem entre duas coisas, dois cursos de acção; fazem uma escolha entre isto e aquilo; uma entendem, a outra não. Com o resultado de tal escolha, esperam preencher a vossa vida. Actuam de acordo com as vossas necessidades, os vossos desejos. Obviamente, quando aquele desejo é realizado, a acção chegou ao fim. Então, como continuam sozinhos, procuram uma outra acção, outra realização. Cada um de vocês enfrenta-se a uma dualidade na acção, uma escolha entre fazer isto ou aquilo; mas quando estão conscientes da inutilidade da escolha, quando estão conscientes com todo o vossoser, sem esforço, então verdadeiramente discernirão.

Só podem testar isto quando estiverem numa crise; não podem testar isto intelectualmente, quando estão sentados à vossa vontade e a imaginar um conflito mental. Poderão aprender a sua verdade apenas quando estiverem cara a cara com uma exigência insistente de escolha, quando tiverem que tomar uma decisão, quando todo o vosso ser exija acção. Se naquele momento se aperceberem com todo o vosso ser, se naquele momento estiverem conscientes da inutilidade da escolha, então daí advém a flor da intuição, a flor do discernimento. A acção que daí nasça é infinita; a acção é então a própria vida. Então não há divisão entra acção e actor; tudo é contínuo. Não há realização temporária que logo termina.

Pergunta: Por favor explique a que se refere quando diz que a auto-disciplina é inútil?

Krishnamurti: Se compreendeu o que tenho estado a dizer, verá a inutilidade da auto-disciplina. Mas explicarei isto novamente e tentarei torná-lo claro.

Porque pensa que deve disciplinar-se a si próprio? Porque quer disciplinar-se a si próprio? Para que quer disciplinar-se a si próprio? Quando diz, “Tenho que me disciplinar”, sustenta perante você mesmo um padrão ao qual pensa que tem de se moldar. A auto-disciplina existe enquanto você quiser preencher o vazio dentro de si; existe enquanto você se agarrar a uma certa descrição do que é Deus, do que é a verdade, enquanto acalentar certos conjuntos de padrões morais que você se força a aceitar como guias. Isto é, a sua acção é regulada, controlada, pelo desejo de se adaptar. Mas se a acção nascer do discernimento, então não há disciplina.

Por favor entenda o que quero dizer com discernimento. Não diga, “Eu aprendi a tocar piano. Isso não envolve disciplina?” ou, “Eu estudei matemática. Não é isso disciplina?” Eu não estou a falar do estudo da técnica, a que não se pode chamar disciplina. Estou a falar da conduta na vida. Fui claro? Temo que a maioria de vocês não tenham compreendido isto, porque livrar-se da ideia de auto-disciplina é muito difícil, uma vez que desde a infância temos sido escravos da disciplina, do controlo. Livrar-se da ideia de disciplina não significa que tenham que ir até ao oposto, que tenham que ser caóticos. O que eu digo é que quando há discernimento, não há necessidade de auto-disciplina; então não há auto-disciplina.

A maioria de vocês encontra-se aprisionada pelo hábito da disciplina. Primeiramente, detêm uma imagem mental do que está certo, do que é verdade, do bom carácter que deveriam ser. Tentam enquadrar as vossas acções nesta imagem mental. Actuam apenas de acordo com a imagem mental que detêm. Enquanto tiverem uma ideia preconcebida do que é a verdade – e a maioria de vocês tem esta ideia – têm que actuar de acordo com isso. A maior parte de vocês não é consciente de que actua de acordo com um padrão, mas quando se tornam conscientes de que assim actuam, então já não copiam nem imitam: então a vossa própria acção revela o que é verdade.

Vocês sabem que a nossa formação física, a nossa formação religiosa e moral, tendem a moldar-nos segundo um padrão. Desde a infância, a maior parte de nós foi treinada para se ajustar a um padrão – social, religioso, económico – e a maior parte de nós não tem consciência disso. A disciplina tornou-se um hábito, e vocês não têm consciência desse hábito. Somente quando se tornam conscientes de que se estão a disciplinar de acordo com um padrão, é que a vossa acção nascerá do discernimento.

Portanto, em primeiro lugar, você deve aperceber-se porque é que se auto-disciplina, e não porque é que deve ou não disciplinar-se. O que aconteceu ao homem através do séculos de auto-disciplina? Tornou-se mais máquina e menos ser humano; apenas alcançou maior destreza na imitação, em ser uma máquina. A auto-disciplina, isto é, submeter-se a uma imagem mental estabelecida seja por si próprio ou por alguém, não lhe ocasiona harmonia; apenas cria o caos.

Que acontece quando você tenta auto-disciplinar-se? A sua acção está sempre a criar vazio dentro de si porque você está a tentar ajustar a suas acções a um padrão. Mas se você tomar consciência de que está a agir de acordo com um padrão – um padrão criado por si ou por outra pessoa – então perceberá a falsidade da imitação e a sua acção nascerá então do discernimento, isto é, da harmonia da sua mente e do seu coração.

Mentalmente você quer agir de uma certa forma, mas emocionalmente você não deseja a mesma finalidade, e daí resulta o conflito. Para conquistar esse conflito você procura segurança na autoridade, e essa autoridade torna-se um padrão. Daí que você não actua de acordo com o que realmente sente e pensa; a sua acção é motivada pelo medo, pelo desejo de segurança, e de tal acção nasce a auto-disciplina. Compreende?

Sabem, compreender com toda a intensidade do vosso ser é uma coisa muito diferente de compreender apenas intelectualmente. Quando as pessoas dizem, “Eu compreendo”, normalmente compreendem só intelectualmente. Mas a análise intelectual não os libertará do hábito da auto-disciplina. Quando actuarem, não digam, “Tenho que ver se este acto nasceu da auto-disciplina, se está de acordo com um padrão.” Semelhante tentativa apenas impede a verdadeira acção. Mas se, na vossa acção, tiverem consciência da imitação, então a vossa acção será espontânea.

Tal como eu disse, se você examinar cada acto para determinar se nasceu ou não da auto-disciplina, da imitação, a sua acção torna-se cada vez mais limitada; há então impedimento, resistência. Não está verdadeiramente a agir de forma nenhuma. Mas se você tomar consciência, com todo o seu ser, da inutilidade da imitação, da inutilidade da conformidade, então a sua acção não será imitativa, atrapalhada, limitada. Quanto mais analisar a sua acção, menos agirá. Não é assim? Para mim, a análise da acção não liberta a mente da imitação, a qual é conformidade, auto-disciplina; o que liberta a mente da imitação é estar consciente com todo o seu ser na sua acção.

Para mim a auto-análise frustra a acção, destrói o viver completo. Talvez não concordem com isto, mas por favor ouçam o que tenho para dizer antes de decidirem se concordam ou não. Eu afirmo que este processo contínuo de auto-análise, que é auto-disciplina, constantemente coloca uma limitação no livre fluxo da vida, que é acção. Porque a auto-disciplina se baseia na ideia de consecução, não na ideia da plenitude da acção. Vêem a distinção? Numa há uma série de consecuções e portanto sempre uma finalidade; ao passo que na outra, a acção nasce do discernimento, e tal acção é harmoniosa e por isso infinita. Fiz-me entender? Preste atenção a si próprio da próxima vez que disser, “Não devo”. A auto-disciplina, o “Devo”, o “Não devo”, baseiam-se na ideia de consecução. Quando você se apercebe da inutilidade da consecução – quando você se apercebe disto com todo o seu ser, tanto emocional como intelectualmente – então já não existe mais um “Devo” e um “Não devo”.

Você fica aprisionado nesta tentativa para se submeter a uma imagem na sua mente, você tem o hábito de pensar “Devo” e “Não devo”. Por isso, para a próxima vez que disser isto, tome consciência de si próprio, e nessa consciência discernirá o que é verdade, e libertar-se-á do impedimento do “Devo” e “Não devo”.

Pergunta: O Senhor diz que ninguém pode ajudar ninguém. Porque é, então, que anda por todo o mundo a dirigir-se às pessoas?

Krishnamurti: Será que essa pergunta necessita de resposta? Significa muito se o compreenderem. Sabem, a maior parte de nós quer adquirir sabedoria ou verdade através de outros, através de alguma agência exterior. Ninguém o pode converter num artista; somente você próprio pode fazê-lo. É isto que quero dizer: Eu posso dar-lhe tintas, pincéis e telas, mas você próprio terá que se tornar o artista, o pintor. Eu não posso convertê-lo num. Nas vossas tentativas para se tornarem espirituais, a maior parte de vocês procura professores, salvadores, mas eu afirmo que ninguém no mundo pode libertá-los do conflito da dor. Alguém lhes poderá dar os materiais, as ferramentas, mas ninguém lhes pode dar aquela chama da vida criativa.

Sabem, nós pensamos em termos de técnica, mas a técnica não vem primeiro, Primeiro você tem que ter a chama do desejo, e então seguir-se-á a técnica. “Mas”, dirá você, “deixem-me aprender. Se me ensinarem a técnica de pintura, então serei capaz de pintar”. Existem muitos livros que descrevem a técnica de pintura, mas aprender apenas a técnica não o tornará num artista criativo. Somente quando você estiver só, sem técnica, sem mestres, só então poderá encontrar a verdade.

Compreendamos isto em primeiro lugar. Vocês estão agora a basear as vossas ideias na conformidade. Vocês pensam que existe um padrão, um caminho, pelo qual podem encontrar a verdade; mas se examinarem, descobrirão que não existe caminho algum que leve à verdade. Para ser conduzido à verdade, você deve saber o que é a verdade, e o seu líder deve saber o que ela é. Não é assim? Eu digo que um homem que ensina a verdade poderá tê-la, mas se ele se oferece para o conduzir e você é conduzido, então ambos estão iludidos. Como pode você conhecer a verdade se ainda está detido pela ilusão? Se a verdade estiver lá, ela expressar-se-á. Um grande poeta tem o desejo, a chama da escrita criativa, e escreve. Se você tiver o desejo, aprenderá a técnica.

Eu sinto que ninguém pode conduzir alguém à verdade, porque a verdade é infinita; é uma terra sem caminhos, e ninguém lhes pode dizer como encontrá-la. Ninguém pode ensiná-los a ser artistas; os outros só lhes podem dar os pincéis e as telas e mostrar-lhes as cores a usar: Ninguém me ensinou, asseguro-lhes, nem aprendi o que digo dos livros. Mas observei, lutei, tentei descobrir. É somente quando se está absolutamente nu, livre de todas as técnicas, de todos os professores, que se descobre.
A Arte de Escutar, Jiddu Krishnamurti