O que é a Acção Correcta? - Ojai, 10ª Palestra - 29 de Junho de 1934

Pelas questões que me foram colocadas, as minhas palestras parecem ter criado alguma confusão, penso eu porque estamos presos nas palavras em si e não entramos profundamente no seu significado ou porque as usamos como um meio de compreensão.
Para mim existe uma realidade, uma imensa verdade viva; e para a compreender, tem que haver total simplicidade de pensamento. O que é simples é infinitamente subtil, o que é simples é muito delicado. Existe uma grande delicadeza, uma infinita subtileza e delicadeza, e se usarem as palavras apenas como um meio de chegar a essa delicadeza, a essa simplicidade de pensamento, então receio que não irão compreender o que quero transmitir. Mas se usarem o significado das palavras como uma ponte para atravessar, então as palavras não se tornarão uma ilusão na qual a mente se perde.
Eu digo que existe uma realidade viva, chamem-lhe Deus, verdade ou o que quiserem, e não pode ser encontrada ou compreendida através da procura. Onde existe a implicação da procura, tem que haver contraste e dualidade; sempre que a mente está a procurar, inevitavelmente tem que implicar uma divisão, uma distinção, um contraste, o que não significa que a mente tenha que estar satisfeita, que a mente tenha que estar estagnada. Existe esse delicado equilíbrio, que não é nem contentamento, nem este esforço incessante nascido da procura, deste desejo de alcançar, de realizar; e nessa delicadeza do equilíbrio reside a simplicidade, não a simplicidade de ter apenas poucas roupas e poucas posses. Não estou a falar de tal simplicidade, que é apenas uma forma rude de simplicidade, mas da simplicidade nascida desta delicadeza de pensamento, em que não há nem procura nem contentamento.
Tal como eu disse, a procura implica dualidade, contraste. Ora onde há contraste, dualidade, tem que haver identificação com um dos opostos, e daqui surge a compulsão. Quando dizemos que procuramos, a nossa mente está a rejeitar algo e a procurar um substituto que a satisfaça, e desse modo cria dualidade, e daqui surge a compulsão. Isto é, a escolha de um é a derrota do outro, não é?
Quando dizemos que procuramos ou cultivamos um novo valor, ele é apenas o subjugar daquele em que a mente está já presa, que é o seu oposto. Esta escolha baseia-se na atracção por um ou medo do outro, e este apegar-se através da atracção, ou rejeitar através do medo, cria influência na mente. A influência é então a negação da compreensão, e só pode existir onde há divisão, a divisão psicológica da qual surgem distinções como as distinções de classe, as distinções nacionais, as distinções religiosas, as distinções de sexo. Isto é, quando a mente está a tentar subjugar, tem que criar dualidade, e esse mesma dualidade nega a compreensão e cria distinções a que chamamos de classe, de religião, de sexo. Essa dualidade influencia a mente, e por isso uma mente influenciada pela dualidade não pode compreender o significado do meio ou o significado da causa do conflito. Estas influências psicológicas são meramente reacções ao meio a partir daquele centro da consciência do “eu”, do gosto e da antipatia, das antíteses, e naturalmente onde há antíteses, opostos, não pode haver compreensão. Desta distinção surge a classificação das influências como benéficas ou perniciosas. Portanto, enquanto a mente for influenciada – e a influência nasce da atracção, dos opostos, das antíteses – tem que haver domínio ou compulsão do amor, do intelecto, da sociedade, e esta influência tem que ser um impedimento a essa compreensão que é beleza, verdade e o próprio amor.
Ora bem, se tiverem consciência desta influência, então podem discernir a sua causa. A maior parte das pessoas parece estar consciente superficialmente, não com a máxima intensidade. Só quando há percepção com a máxima intensidade de consciência, de pensamento e emoção, é que podem discernir a divisão que é criada através da influência, a qual nega a compreensão.
Pergunta: Depois de ouvir a sua palestra sobre a memória, perdi completamente a minha, e verifico que não me posso lembrar das minhas imensas dívidas. Sinto-me afortunado. Isto é libertação?
Krishnamurti: Pergunte à pessoa a quem deve dinheiro. Receio que haja alguma confusão com respeito ao que tenho tentado dizer relativamente à memória. Se confia na memória como um guia para o comportamento, como um meio de actividade na vida, então essa memória tem que impedir a sua acção, o seu comportamento, porque então essa acção ou comportamento é apenas o resultado do cálculo, e não tem por isso espontaneidade, não tem riqueza, não tem plenitude de vida. Não significa que deva esquecer as suas dívidas. Não pode esquecer o passado. Não pode apagá-lo da sua mente. Isso é uma impossibilidade. Subconscientemente ele existirá, mas se esse subconsciente, essa memória dormente estiver a influenciá-lo inconscientemente, se estiver a moldar a sua acção, o seu comportamento, toda a sua perspectiva de vida, então essa influência tem que criar sempre mais limitações, tem que impor sempre mais carga ao funcionamento da inteligência.
Por exemplo, cheguei recentemente da Índia; estive na Austrália e na Nova Zelândia onde conheci várias pessoas, tive muitas ideias e vi muitas paisagens. Não posso esquecer estas coisas, embora a sua memória possa enfraquecer. Mas a reacção ao passado pode impedir a minha plena compreensão no presente, pode entravar o funcionamento inteligente da minha mente. Isto é, se as minhas experiências e recordações do passado se tornam obstáculos no presente através da reacção que geram, então não posso compreender ou viver plenamente, intensamente, no presente.
Reage ao passado porque o presente perdeu o seu significado, ou porque quer evitar o presente; portanto volta ao passado e vive naquela excitação emocional, naquela reacção de memória ondulante, porque o presente tem pouco valor. Portanto quando diz, “Perdi completamente a minha memória”, receio que sirva apenas para um lugar. Não pode perder a memória, mas vivendo completamente no presente, na plenitude do momento, torna-se consciente de todos os emaranhamentos subconscientes da memória, das esperança e ânsias dormentes que se agitam e o impedem de funcionar inteligentemente do presente. Se tiver consciência disso, se tiver consciência desse obstáculo, consciência dele na sua profundidade, não superficialmente, então a memória subconsciente adormecida, que é apenas a falta de compreensão e a incompletude do viver, desaparece, e por conseguinte você enfrenta de uma maneira nova cada movimento do meio, cada movimento veloz do pensamento.
Pergunta: O senhor diz que a compreensão completa do meio exterior e interior do indivíduo o liberta da dependência e do sofrimento. Ora, mesmo nesse estado, como é que uma pessoa se pode libertar do sofrimento indescritível que na natureza das coisas é causado pela morte de alguém que realmente ama?
Krishnamurti: Qual é neste caso a causa do sofrimento? E a que é que chamamos sofrimento? Não é o sofrimento apenas um choque para a mente para a despertar para a sua própria insuficiência? O reconhecimento dessa insuficiência gera aquilo a que chamamos dor. Suponham que têm estado a confiar no vosso filho ou no vosso marido ou na vossa mulher para satisfazer essa insuficiência, essa incompletude; pela perda dessa pessoa a quem amam, é criada a consciência plena desse vazio, dessa vácuo, e dessa consciência chega a dor, e vocês dizem “Perdi alguém.”
Portanto, através da morte há, em primeiro lugar, a consciência plena do vazio que têm estado cuidadosamente a evitar. Por isso onde há dependência tem que haver vazio, falta de profundidade, insuficiência, e por conseguinte sofrimento e dor. Não queremos reconhecer isso; não vemos que isso é a causa fundamental. Portanto começamos a dizer “Sinto a falta do meu amigo, do meu marido, da minha mulher, do meu filho. Como vou superar esta perda? Como vou superar este sofrimento?”
Ora toda a superação não é mais que uma substituição. Não há nela compreensão e por isso só pode haver mais sofrimento, embora momentaneamente possam encontrar uma substituição que ponha a mente completamente a dormir. Se não procuram uma superação, então voltam-se para as sessões espíritas, para os médiuns, ou refugiam-se na prova científica de que a vida continua depois da morte. Começam portanto a descobrir vários meios de fuga e substituição, que momentaneamente os aliviam do sofrimento. Ao passo que, se houvesse a cessação deste desejo de superar e se houvesse realmente o desejo de compreender, de descobrir, fundamentalmente, o que causa dor e sofrimento, então descobririam que enquanto houver solidão, superficialidade, vazio, insuficiência, que na sua expressão externa são dependência, tem que haver dor. E não podem preencher essa insuficiência pela superação de obstáculos, pelas substituições, pela fuga ou pela acumulação, pois tudo isso é apenas a astúcia da mente perdida na procura de obtenção.
O sofrimento é apenas aquela elevada e intensa claridade de pensamento e emoção que os força a reconhecer as coisas tal como elas são. Mas isso não significa aceitação, resignação. Quando vêem as coisas como elas são no espelho da verdade, que é a inteligência, então há uma alegria, um êxtase; não há nisso dualidade, não há sentido de perda, não há divisão. Garanto-lhes que isto não é teórico. Se considerarem o que estou agora a dizer, com a minha resposta à primeira questão sobre memória, verão como a memória gera cada vez maior dependência, o contínuo regressar emocionalmente a um evento, para obter dele uma reacção, o que impede a expressão plena da inteligência no presente.
Pergunta: Que sugestão ou conselho daria a uma pessoa que está obstaculizada por um forte desejo sexual?
Krishnamurti: Afinal, onde não há expressão criativa da vida, damos uma importância indevida ao sexo que se torna um problema agudo. Portanto a pergunta não é que conselho ou sugestão eu daria, ou como se pode vencer a paixão, o desejo sexual, mas como libertar esse viver criativo, e não apenas procurar resolver uma parte dele, que é o sexo; isto é, como compreender a totalidade, a plenitude da vida.
Ora bem, através da educação moderna, através das circunstâncias e do meio, vocês são levados a fazer algo que detestam. Repugnam-se, mas são forçados a fazê-lo devido a uma falta de capacidade adequada, de formação adequada. No vosso trabalho são impedidos pelas circunstâncias, pelas condições, de se expressarem profundamente, criativamente, e portanto tem que haver um escape; e este escape torna-se o problema do sexo ou o problema da bebida ou um problema idiota, insensato. Todas estas saídas se transformam em problemas.
Ou têm inclinação artística. Há muito poucos artistas, mas podem ter essa inclinação, e essa inclinação está continuamente a ser pervertida, deformada, frustrada, para que não tenham meios de verdadeira auto-expressão, e assim acabam por dar uma importância indevida seja ao sexo ou a uma qualquer mania religiosa. Ou as vossas ambições são frustradas, restringidas, obstaculizadas, e assim mais uma vez é dada uma importância indevida àquelas coisas que deveriam ser normais. Portanto, até que compreendam exaustivamente os vossos desejos religiosos, políticos, económicos e sociais, e os seus obstáculos, as funções naturais da vida tomarão uma importância imensa e o primeiro lugar nas vossas vidas. Daí que todos os inumeráveis problemas de cobiça, de possessividade, de sexo, de distinções sociais e raciais tenham a sua falsa medida e o seu falso valor. Mas se lidassem com a vida, não em partes mas como um todo, compreensivamente, criativamente, com inteligência, então veriam que estes problemas, que debilitam a mente e destroem o viver criativo, desaparecem, e então a inteligência funciona normalmente; e nisso há êxtase.
Pergunta: Tenho tido a impressão que tenho posto as suas ideias em prática; mas não tenho alegria na vida, não tenho entusiasmo por nenhuma procura. As minhas tentativas para estar consciente não clarificaram a minha confusão, nem trouxeram qualquer mudança ou vitalidade à minha vida. O meu viver não tem para mim mais significado agora do que tinha quando comecei a ouvi-lo há sete anos atrás. O que se passa comigo?
Krishnamurti: Pergunto-me se o interlocutor compreendeu, em primeiro lugar, o que tenho estado a dizer antes de tentar pôr as minhas ideias em prática. E porque deveria ele pôr as minhas ideias em prática? E quais são as minhas ideias? Não lhe estou a dar um molde ou um código pelo qual possa viver, ou um sistema que possa seguir. Tudo o que estou a dizer é que para viver criativamente, entusiasticamente, inteligentemente, vitalmente, a inteligência tem que funcionar. Essa inteligência é pervertida, obstaculizada, pelo que se chama memória, e eu expliquei o que quero dizer com isso, portanto não entrarei em pormenores outra vez. Enquanto existir esta batalha constante para alcançar, enquanto a mente for influenciada, tem que haver dualidade, e por isso dor, luta; e a nossa procura da verdade ou da realidade é apenas um fuga dessa dor.
E portanto eu digo: dêem-se conta de que o vosso esforço, a vossa luta, as vossas memórias que colidem umas com as outras, estão a destruir a vossa inteligência. Darem-se conta não é serem superficialmente conscientes, mas entrar na plena profundidade da consciência para não deixar por descobrir uma única reacção inconsciente. Tudo isto exige pensamento; tudo isto exige uma vivacidade de mente e de coração, não uma mente que está atravancada com crenças, credos e ideais. A maior parte das mentes está sobrecarregada com essas coisas e com o desejo de as seguir. Quando se tornarem conscientes da vossa carga, não digam que não devem ter ideais, que não devem ter credos, não repitam todo o resto da gíria. O próprio “não devo” cria outra doutrina, outro credo; tornem-se apenas conscientes, e na intensidade dessa consciência, nessa chama, criarão tal crise, tal conflito, que o próprio conflito dissolverá o obstáculo.
Sei que algumas pessoas vêm aqui ano após ano, e tento explicar estas ideias de maneiras diferentes em cada ano, mas receio que haja muito pouco pensamento entre as pessoas que dizem, “Temos estado a ouvi-lo durante sete anos.” Por pensamento quero dizer não o mero raciocínio intelectual, que são apenas cinzas, mas o equilíbrio entre emoção e razão, entre afecto e pensamento; e esse equilíbrio não é influenciado, não é afectado pelo conflito dos opostos. Mas se não houver nem a capacidade de pensar claramente, nem a intensidade de sentir, como podem despertar, como pode haver equilíbrio, como pode haver vivacidade, consciência? Portanto a vida torna-se inútil, inane, sem valor.
Por isso a primeira coisa a fazer, se mo permitem sugerir, é descobrir porque pensam de determinada maneira, e porque sentem de determinada maneira. Não tentem alterar isso, não tentem analisar os vossos pensamentos e as vossas emoções; mas tornem-se conscientes de porque é que pensam dentro de uma rotina particular, e a partir de que motivo agem. Embora possam descobrir o motivo através da análise, embora possam descobrir algo através da análise, não será real; só será real quando estiverem intensamente conscientes no momento do funcionamento do vosso pensamento e emoção; verão então a sua extraordinária subtileza, a sua fina delicadeza. Enquanto tiverem um “devo” e um “não devo”, nesta compulsão nunca descobrirão aquele veloz vaguear do pensamento e da emoção. E tenho a certeza que foram educados na escola do “deves” e “não deves” e por isso destruíram o pensamento e o sentimento. Foram limitados e mutilados pelos sistemas, pelos métodos, pelos vossos professores. Deixem portanto todos esses “devo” e “não devo”. Isto não quer dizer que haja libertinagem, mas sim tornarem-se conscientes de uma mente que está sempre a dizer, “Devo”, e “Não devo.” Então, tal como uma flor desabrocha diante de uma manhã, assim a inteligência acontece, está ali, a funcionar, a gerar compreensão.
Pergunta: O artista é às vezes mencionado como aquele que tem esta compreensão de que fala, pelo menos enquanto trabalha criativamente. Mas se alguém o perturba ou o faz zangar, ele pode reagir violentamente, desculpando a sua reacção como uma manifestação de temperamento. Obviamente que ele não está a viver completamente no momento. Compreende ele verdadeiramente se tão facilmente volta a escorregar para a auto-consciência?
Krishnamurti: Quem é a pessoa a que chamam artista? Um homem que é momentaneamente criativo. Para mim ele não é um artista. Ao homem que apenas em raros momentos tem o seu impulso criativo e expressa essa criatividade através da perfeição da técnica, por certo que não o chamaria artista. Para mim, o verdadeiro artista é aquele que vive completamente, harmoniosamente, que não separa a sua arte do seu viver, cuja própria vida é essa expressão, seja um quadro, música, ou o seu comportamento; é aquele que não divorciou a sua expressão numa tela ou na música ou na pedra da sua conduta diária, da sua vida diária. Isso exige a mais elevada inteligência, a mais elevada harmonia. Para mim o verdadeiro artista é o homem que tem essa harmonia. Ele pode expressá-la na tela, ou pode falar, ou pode pintar; ou pode nem sequer expressá-la, pode senti-la. Mas tudo isto exige aquele equilíbrio requintado, aquela intensidade de consciência, e por isso a sua expressão não está separada da continuidade diária do viver.