Aquilo a que chamamos felicidade ou êxtase é para mim pensamento criativo. E o pensamento criativo é o movimento infinito do pensamento, da emoção e da acção. Isto é, quando o pensamento, que é emoção, que é a acção em si, está desimpedido no seu movimento, não está compelido ou influenciado ou limitado por uma ideia, e não procede do contexto da tradição ou do hábito, então esse movimento é criativo. Desde que o pensamento – e não repetirei de cada vez emoção e acção – desde que o pensamento esteja circunscrito, preso por uma ideia fixa, ou se ajustar apenas a um contexto ou condição e se tornar portanto limitado, esse pensamento não é criativo.
Portanto a questão que cada pessoa ponderada coloca a si mesma é como pode despertar este pensamento criativo; porque quando há este pensamento criativo, que é movimento infinito, então não pode haver qualquer ideia de uma limitação, de um conflito.
Ora bem, este movimento do pensamento criativo não procura na sua expressão um resultado, uma consecução; os seus resultados e expressões não são a sua culminação. Ele não tem culminação ou meta, porque está eternamente em movimento. A maior parte das mentes procuram uma culminação, uma meta, uma consecução, e moldam-se à ideia de sucesso, e tal pensamento, tal maneira de pensar está continuamente a limitar-se a si próprio. Ao passo que se não houver ideia de consecução mas somente o movimento contínuo do pensamento como compreensão, como inteligência, então esse movimento do pensamento é criativo. Isto é, o pensamento criativo cessa quando a mente é mutilada pelo ajustamento através da influência, ou quando funciona com o contexto de uma tradição que não foi compreendida, ou a partir de um ponto fixo, como um animal amarrado a um poste. Enquanto esta limitação, este ajustamento existir, não pode haver pensamento criativo, inteligência, que por si só é liberdade.
Este movimento criativo do pensamento nunca procura um resultado nem chega a uma culminação, porque o resultado ou a culminação é sempre a consequência de cessação e movimento alternados, ao passo que se não houver procura de um resultado, mas só movimento contínuo de pensamento, então isso é pensamento criativo. Mais uma vez, o pensamento criativo está livre da divisão que cria conflito entre pensamento, emoção e acção. E a divisão só existe quando existe a procura de uma meta, quando há ajustamento e a complacência da certeza.
A acção é o movimento que é em si pensamento e emoção, conforme expliquei. Esta acção é a relação entre o indivíduo e a sociedade. É conduta, trabalho, cooperação, a que chamamos realização. Isto é, quando a mente funciona sem procurar uma culminação, uma meta, e pensando por isso criativamente, esse pensamento é acção, que é a relação entre o indivíduo e a sociedade. Ora, se este movimento do pensamento for claro, simples, directo, espontâneo, profundo, então não há conflito no indivíduo contra a sociedade, porque então a acção é a própria expressão deste movimento vivo, criativo.
Portanto, para mim não existe a arte de pensar, existe só o pensamento criativo. Não há técnica de pensamento, mas somente o funcionamento espontâneo, criativo da inteligência, que á a harmonia da razão, emoção e acção, não divididas ou separadas umas das outras.
Ora bem, este pensamento e sentimento, sem a procura de uma recompensa, de um resultado, é uma verdadeira experiência, não é? Na verdadeira experiência, na verdadeira experimentação, não pode haver a procura de resultado, porque esta experiência é o movimento do pensamento criativo. Para experimentar, a mente tem que estar continuamente a libertar-se do meio com o qual colide no seu movimento, o meio a que chamamos o passado. Não pode existir pensamento criativo se a mente estiver impedida pela procura de uma recompensa, pela busca de uma meta.
Quando a mente e o coração estão à procura de um resultado ou de uma obtenção, desse modo complacência e estagnação, tem que haver uma prática, uma superação, uma disciplina, devido à qual chega o conflito. A maior parte das pessoas pensa que praticando uma determinada ideia, libertarão o pensamento criativo. Ora, a prática, se chegarem a observá-la, a ponderar sobre ela, nada mais é que o resultado da dualidade. E uma acção nascida desta dualidade tem que perpetuar essa distinção entre mente e coração, e uma acção assim torna-se meramente a expressão de uma conclusão calculada, lógica, auto-protectora. Se existir esta prática da auto-disciplina, ou este domínio contínuo ou influência pelas circunstâncias, então a prática é apenas uma alteração, uma mudança em direcção a uma finalidade; é apenas acção dentro dos confins do pensamento limitado a que chamam auto-consciência. Portanto a prática não ocasiona o pensamento criativo.
Pensar criativamente é originar harmonia entre mente, emoção e acção. Isto é, se estão persuadidos de uma acção, sem a procura de uma recompensa no final, então essa acção, sendo o resultado da inteligência, liberta todos os obstáculos que foram colocados na mente através da falta de compreensão.
Receio que não estejam a compreender isto. Quando exponho uma nova ideia pela primeira vez, e não estão habituados a ela, achá-la-ão naturalmente muito difícil de compreender; mas se reflectiram sobre ela, verão o seu significado.
Onde a mente e o coração são dominados pelo medo, pela falta de compreensão, pela compulsão, uma mente assim, embora possa pensar dentro dos limites, dentro das limitações desse medo, não está realmente a pensar, e a sua acção tem sempre que lançar novas barreiras. Por isso a sua capacidade de pensar está sempre a ser limitada. Mas se a mente se libertar através da compreensão das circunstâncias, e em consequência agir, então essa mesma acção é pensamento criativo.
Pergunta: Poderia por favor dar um exemplo de um exercício prático de consciência constante e escolha na vida diária?
Krishnamurti: Faria essa pergunta se houvesse uma cobra venenosa no seu quarto? Nessa altura não perguntaria, “Como vou manter-me desperto? Como hei-de estar intensamente desperto?” Faz essa pergunta apenas quando não tem a certeza de que há uma cobra venenosa no seu quarto. Ou está inteiramente inconsciente disso, ou quer brincar com essa cobra, quer desfrutar da dor e dos prazeres da cobra.
Por favor acompanhem isto. Não pode haver consciência, essa vivacidade de mente e emoção, enquanto a mente estiver presa tanto na dor como no prazer. Isto é, quando uma experiência lhes confere dor e ao mesmo tempo lhes dá prazer, vocês nada fazem sobre ela. Vocês só agem quando a dor é maior que o prazer, mas se o prazer for maior, não fazem absolutamente nada sobre isso, porque não há conflito agudo. É somente quando a dor tem mais peso que o prazer, quando é mais aguda que o prazer, que vocês exigem uma acção.
A maior parte das pessoas espera que a dor aumente antes de agir, e durante este período de espera, querem saber como estar conscientes. Ninguém lho pode dizer. Esperam que a dor aumente antes de agirem, isto é, esperam que a dor através da sua compulsão as force a agir, e nessa compulsão não há inteligência. É somente o meio que as força a agir de uma determinada maneira, não a inteligência. Por isso quando a mente fica presa nesta estagnação, nesta falta de tensão, naturalmente haverá mais dor, mais conflito.
Pelo aspecto das coisas politicamente, a guerra pode rebentar de novo. Pode rebentar dentro de dois anos, ou de cinco, ou de dez. Um homem inteligente pode ver isto e inteligentemente agir. Mas o homem que está estagnado, que está à espera que a dor o force à acção, conta com um caos maior, um sofrimento maior, que lhe dê ímpeto para agir, e por isso a sua inteligência não está a funcionar. Só há consciência quando a mente e o coração estão tensos, estão em grande tensão.
Por exemplo, quando vêem que a possessividade tem que conduzir à incompletude, quando vêem que a insuficiência, a falta de riqueza interior, a futilidade, têm sempre que produzir dependência, quando reconhecem isso, o que acontece à vossa mente e ao vosso coração? A ânsia imediata é preencher essa superficialidade; mas além disso, quando vêem a inutilidade da acumulação contínua, começam a ter consciência de como a vossa mente funciona. Vêem que na mera acumulação não pode haver pensamento criativo; e contudo a mente procura a acumulação. Consequentemente ao darem-se conta disso, criam um conflito, e esse mesmo conflito dissolverá a causa da acumulação.
Pergunta: De que maneira poderia um homem de estado que compreendesse o que o senhor está a dizer, dar-lhe expressão nos assuntos públicos? Ou não é mais provável que se retirasse da política quando compreendesse as suas falsas bases e objectivos?
Krishnamurti: Se ele compreendesse o que estou a dizer, não separaria a política da vida na sua totalidade; e não vejo porque deveria retirar-se. Afinal, a política actualmente é apenas o instrumento da exploração; mas se ele considerasse a vida como um todo, não só política – e por política ele quer dizer apenas o seu país, o seu povo, e a exploração de outros – e considerasse os problemas humanos não como nacionais mas como problemas do mundo, não como problemas americanos, hindus ou alemães, então, se ele compreendesse aquilo de que falo, seria um verdadeiro ser humano, não um político. E para mim, essa é a coisa mais importante, ser um ser humano, não um explorador, ou meramente um especialista num curso de acção específico. Tentei explicar isso ontem na minha palestra. Penso que é onde reside o mal. O político só lida com a política; o moralista com a moral, o chamado instrutor espiritual com o espírito, cada um pensando que ele é o especialista, e excluindo todos os outros. Toda a nossa estrutura de sociedade se baseia nisso, e portanto estes líderes dos vários departamentos geram maiores estragos e maior miséria. Ao passo que se nós como seres humanos víssemos a ligação íntima entre todos eles, entre políticos, religião, a vida económica e social, se víssemos a ligação, então não pensaríamos e agiríamos separadamente, de maneira individualista.
Na Índia, por exemplo, há milhões de pessoas a morrer à fome. O Hindu que é nacionalista diz; “Vamos em primeiro lugar tornar-nos intensamente nacionais; então seremos capazes de resolver este problema da fome.” Ao passo que para mim, a maneira de resolver o problema da fome é não tornar-se nacionalista, mas antes pelo contrário; a fome é um problema mundial, e este processo de isolamento apenas incrementa mais a fome. Portanto se o político lidar com os problemas da vida humana apenas como um político, então esse homem cria maior devastação, maior mal, maior miséria. Mas se ele considerar o todo da vida sem diferenciação entre raças, nacionalidades e classes, então ele é verdadeiramente um ser humano, embora possa ser um político.
Pergunta: O senhor disse que com dois ou três outros que compreendessem, poderia mudar o mundo. Muitos acreditam que eles compreendem, e que há outros que igualmente compreendem, tais como artistas e homens de ciência, e contudo o mundo não mudou. Por favor fale sobre a maneira em que mudaria o mundo. Não está por acaso a mudar o mundo, talvez lenta e subtilmente, mas não obstante definitivamente, através do que fala, da sua vida, e da influência que indubitavelmente terá no pensamento humano nos anos vindouros? É esta a mudança que tencionava, ou era algo que imediatamente afectasse a estrutura política, económica e racial?
Krishnamurti: Receio nunca ter pensado na iminência da acção e do seu efeito. Para se ter um resultado duradouro, verdadeiro, tem que haver, por trás da acção, uma grande observação, pensamento, e inteligência, e muito poucas pessoas estão disposta a pensar criativamente, ou a ficar livres da influência e do preconceito. Se começarem a pensar individualmente, serão então capazes de cooperar inteligentemente; e enquanto não houver inteligência não pode haver cooperação, mas apenas compulsão e por isso caos.
Pergunta: Até que ponto pode uma pessoa controlar as suas próprias acções? Se somos, em qualquer altura, a soma da nossa experiência prévia, e não existe o eu espiritual, é possível que uma pessoa aja de qualquer outra maneira do que aquela que está determinada pela sua herança original, a soma da sua educação passada, e os estímulos que simultaneamente actuam sobre ela? Se assim é, o que causa a mudança no processo físico, e como?
Krishnamurti: “Até que ponto pode um pessoa controlar as suas próprias acções?” Uma pessoa não controla as suas próprias acções se não compreendeu o meio. Nessa altura ela está só a agir sob compulsão, sob a influência do meio; uma acção assim não é de todo acção, mas apenas reacção ou auto-protecção. Mas quando uma pessoa começa a compreender o meio, quando vê o seu pleno significado e valor, e é então senhora das suas próprias acções, então é inteligente: portanto não importa qual seja a condição, ela funcionará inteligentemente.
“Se somos, em qualquer altura, a soma da nossa experiência prévia, e não existe o eu espiritual, é possível que uma pessoa aja de qualquer outra maneira do que aquela que está determinada pela sua herança original, a soma da sua educação passada, e os estímulos que simultaneamente actuam sobre ela?”
Novamente, o que disse aplica-se a isto. Isto é, se ela age meramente a partir da carga do passado, seja a sua herança individual ou racial, tal acção é apenas uma reacção de medo; mas se compreende o subconsciente, isto é, a sua acumulação passada, então está livre do passado, e por isso livre da compulsão do meio.
Afinal, o meio é do presente bem como do passado. Não se compreende o presente devido à turvação da mente pelo passado; e libertar a mente do subconsciente, dos obstáculos inconscientes do passado, não é levar a mente de volta ao passado, mas estar plenamente consciente no presente. Nessa consciência, nessa plena consciência do presente, todos os obstáculos do passado entram em actividade, agitam-se à nossa frente, e nessa agitação, se estiverem conscientes, verão o significado do passado, e por conseguinte compreenderão o presente. “Se assim é, o que causa a mudança no processo físico, e como?” Tanto quanto compreendo o interlocutor, ele quer saber o que produz esta acção, esta acção que lhe é forçada pelo meio. Ele age de uma maneira específica, compelido pelo meio, mas se compreendesse o meio inteligentemente, não haveria compulsão fosse ela qual fosse; haveria compreensão, que é a própria acção.
Pergunta: Vivo num mundo de caos, politicamente, economicamente e socialmente, limitado por leis e convenções que restringem a minha liberdade. Quando os meus desejos colidem com estas imposições, tenho que transgredir a lei e arcar com as consequências, ou reprimir os meus desejos. Onde há, então, num mundo assim, alguma possibilidade de fugir da auto-disciplina?
Krishnamurti: Falei sobre isto muitas vezes, mas tentarei explicá-lo outra vez. A auto-disciplina é apenas um ajustamento ao meio, provocada pelo conflito. É a isso que chamo auto-disciplina. Vocês estabeleceram um padrão, um ideal, que actua como uma compulsão, e forçam a mente a ajustar-se a esse meio, forçando-o, modificando-o, controlando-o. Que acontece quando fazem isso? Estão na realidade a destruir a criatividade; estão a perverter, a suprimir o afecto criativo. Mas se começarem a compreender o meio, então já não há repressão ou o mero ajustamento ao meio, a que chamam auto-disciplina.
Como podem então compreender o meio? Como podem compreender o seu pleno valor, o seu pleno significado? O que os impede de ver o seu significado? Em primeiro lugar, o medo. O medo é a causa da procura de protecção e segurança, segurança essa tanto física, como espiritual, religiosa ou emocional. Enquanto houver essa procura tem que haver medo, que cria então uma barreira entre a vossa mente e o vosso meio, e gera por isso conflito; e não podem dissolver esse conflito enquanto estiverem somente preocupados com o ajustamento, a modificação, e nunca com a descoberta da causa fundamental do medo.
Portanto onde houver esta procura de segurança, de uma certeza, de uma meta, impedindo o pensamento criativo, tem que haver ajustamento, chamado auto-disciplina, e que é apenas compulsão, a imitação de um padrão. Ao passo que quando a mente vê que não existe tal coisa como a segurança na acumulação de coisas ou de conhecimento, então liberta-se do medo, e por conseguinte é inteligência, e isso que é inteligência não se disciplina a si próprio. Só há auto-disciplina onde não há inteligência. Onde há inteligência, há compreensão, livre da influência, do controlo e do domínio.
Pergunta: Como é possível despertar o pensamento num organismo onde o mecanismo requerido para a apreensão das ideias abstractas está ausente?
Krishnamurti: Pelo processo simples do sofrimento; pelo processo da experiência contínua. Mas sabem, refugiamo-nos tanto por trás dos falsos valores que paramos de todo de pensar, e depois perguntamos “O que é que fazemos? Como vamos despertar o pensamento?” Cultivámos medos que se tornaram glorificados como virtudes e ideais, por trás dos quais a mente se refugia, e toda a acção procede desse refúgio, desse molde. Por isso não há pensamento. Vocês têm convenções, e ao ajustamento a estas convenções chama-se pensamento e acção, que não é de todo pensamento e acção, porque nasce do medo, e por isso estropia a mente.
Como podem despertar o pensamento? As circunstâncias, ou a morte de alguém que amam, ou uma catástrofe, ou depressão, forçam-nos ao conflito. As circunstâncias, as circunstâncias externas, forçam-nos a agir, e nessa compulsão pode haver o despertar do pensamento, porque estão a agir através do medo. E se começarem a ver que não podem esperar pelas circunstâncias para os forçar a agir, então começam a observar as próprias circunstâncias; começam então a penetrar e a compreender as circunstâncias, o meio, não esperam pela depressão para os tornar pessoas virtuosas, mas libertam a mente da possessividade, da compulsão.
O sistema aquisitivo está baseado na ideia de que podem possuir, e que é legal possuir. A posse glorifica-os. Quanto mais tiverem, melhor, mais ilustres são considerados. Vocês criaram este sistema, e tornaram-se escravos desse sistema. Podem criar uma outra sociedade, não baseada na aquisitividade, e essa sociedade pode força-los, como indivíduos, a submeterem-se às suas convenções, tal como esta sociedade os compele a submeterem-se à sua aquisitividade. Qual é a diferença? Absolutamente nenhuma. Vocês como indivíduos estão simplesmente a ser forçados pelas circunstâncias ou pela lei a agir numa determinada direcção, e por isso não há de todo pensamento criativo; ao passo que se a inteligência começasse a funcionar, então não seriam escravos de nenhuma das duas sociedades, da aquisitiva e da não-aquisitiva. Mas para libertar a mente, tem que haver grande intensidade; tem que haver esta contínua vigilância, observação, a qual gera ela própria o conflito. Esta vigilância produz ela própria uma perturbação, e quando há essa crise, essa intensidade de conflito, então a mente, se não fugir, começa a pensar de uma maneira nova, a pensar criativamente, e esse pensar é em si eternidade.