Esta manhã vou só responder a perguntas.
Pergunta: Qual é a diferença entre autodisciplina e repressão?
Krishnamurti: Não creio que haja muita diferença entre as duas porque ambas negam a inteligência. A repressão é a forma grosseira de uma autodisciplina mais subtil, que é também repressão; isto é, tanto a repressão como a autodisciplina são meros ajustamentos ao meio. Uma é a forma grosseira de ajustamento, que é a repressão, e a outra, a autodisciplina, é a forma subtil. Ambas se baseiam no medo: a repressão, num medo óbvio; a outra, a autodisciplina, no medo nascido da perda, ou no medo que se expressa através da obtenção.
A autodisciplina – aquilo a que chamam autodisciplina – é apenas um ajustamento a um meio que não compreendemos completamente; por isso nesse ajustamento tem que haver a negação da inteligência. Porque é que uma pessoa tem alguma vez que se disciplinar? Porque é que uma pessoa se disciplina, se força a moldar-se a um padrão específico? Porque é que tanta gente pertence às várias escolas de disciplina, que se supõem conduzir à espiritualidade, a maior compreensão, a maior esclarecimento do pensamento? Verão que quanto mais disciplinarem a mente, treinarem a mente, maiores são as suas limitações. Por favor, uma pessoa tem que reflectir sobre isto cuidadosamente e com delicada percepção e não ficar confusa ao introduzir outras questões. Aqui estou a usar a palavra autodisciplina como na pergunta, isto é, disciplinar-se a si próprio segundo um determinado padrão, preconcebido ou preestabelecido, e por isso com o desejo de alcançar, de obter. Ao passo que para mim, o próprio processo da disciplina, este constante retorcer da mente a um padrão específico preestabelecido, tem que eventualmente estropiar a mente. A mente que é realmente inteligente está livre da autodisciplina, porque a inteligência nasce do questionamento do meio, e da descoberta do verdadeiro significado do meio. Nessa descoberta há verdadeiro ajustamento, não o ajustamento a um padrão ou situação particulares, mas o ajustamento através da compreensão, que está por isso livre da condição particular.
Um primitivo, por exemplo; o que faz ele? Nele não há disciplina, não há controlo, não há repressão. Este primitivo faz o que deseja fazer. O homem inteligente também faz o que deseja, mas com inteligência. A inteligência não nasce da autodisciplina ou da repressão. Num caso é totalmente a procura do prazer. O homem primitivo procurando o objecto que deseja. No outro caso, o homem inteligente vê o significado do desejo e vê o conflito; o homem primitivo não o faz, ele persegue qualquer coisa que deseje e cria sofrimento e dor. Portanto para mim a autodisciplina e a repressão são ambas semelhantes – ambas negam a inteligência.
Por favor experimentem com o que eu disse sobre disciplina, sobre autodisciplina. Não o rejeitem, não digam que têm que ter autodisciplina porque haverá caos no mundo – como se não houvesse já caos no mundo; e mais uma vez, não aceitem simplesmente o que eu digo, concordando em que é verdade. Estou a dizer-lhes algo com o qual experimentei e que descobri ser verdade. Psicologicamente penso que é verdade, porque a autodisciplina implica uma mente que está amarrada a um pensamento ou crença ou ideal específicos, um mente que está dominada por uma condição; e tal como um animal preso a um poste só pode deambular dentro da distância da sua corda, também a mente que está amarrada a uma crença, que está pervertida através da autodisciplina, só deambula dentro da limitação dessa condição. Por isso uma mente assim não é mente, é incapaz de pensar. Pode ser capaz de um ajustamento entre as limitações do poste e o ponto mais distante do seu alcance; mas uma mente assim, um coração assim, não pode realmente pensar e sentir. A mente e o coração são disciplinados, estropiados, pervertidos, através da negação do pensamento, da negação do afecto. Portanto têm que observar, dar-se conta de como o vosso próprio pensamento, como os vossos próprios sentimentos funcionam, sem querer guiá-los para qualquer direcção específica. Em primeiro lugar, antes de guiá-los, descubram como eles funcionam. Antes de tentarem mudar e alterar o pensamento e o sentimento, descubram a maneira como trabalham, e verão que eles estão continuamente a ajustar-se às limitações estabelecidas por aquele ponto fixado pelo desejo e a realização desse desejo. Na consciência não há disciplina.
Deixem-me dar um exemplo. Suponham que têm consciência da diferença de classes, que são snobes. Não sabem que são snobes, mas querem descobrir se são; como descobrirão? Dando-se conta do vosso pensamento e das vossas emoções. Depois o que acontece? Suponham que descobrem que são snobes, então essa mesma descoberta cria uma perturbação, um conflito, e é precisamente esse conflito que dissolve o snobismo. Ao passo que se apenas disciplinarem a mente para não serem snobes, estão a desenvolver uma característica diferente que é o oposto de ser um snobe, e sendo deliberado, e por isso falso, é igualmente pernicioso.
Portanto, porque estabelecemos vários padrões, várias metas, auxílios, que estamos continuamente, consciente ou inconscientemente, a procurar, disciplinamos as nossas mentes e corações nesse sentido, e consequentemente tem que haver controlo, perversão. Ao passo que se começarem a averiguar as condições que criam conflito, e desse modo despertarem a inteligência, então essa mesma inteligência é tão superior que está continuamente em movimento e por isso nunca há um ponto estático que possa criar conflito.
Pergunta: Admitindo que o “eu” é composto pelas reacções do meio, por que método se pode fugir das suas limitações; ou como se começa o processo de reorientação para evitar o conflito entre as duas coisas falsas?
Krishnamurti: Em primeiro lugar, quer saber o método de fuga das limitações. Porquê? Porque pergunta? Por favor, porque é que pedem sempre um método, um sistema? O que indica este desejo de um método? Cada solicitação de um método indica o desejo de fugir. Querem que lhes estabeleça um sistema para que possam imitar esse sistema. Por outras palavras, querem que se invente um sistema para se sobreporem àquelas condições que estão a criar conflito, para que possam fugir de todos os conflitos. Por outras palavras procuram simplesmente ajustar-se a um padrão para fugir do conflito ou do vosso meio. É esse o desejo por trás do pedido de um método, de um sistema. Sabem, a vida não é um sistema de treino para desenvolvimento da memória. O desejo de um método indica essencialmente o desejo de fugir.
“Como se começa o processo de reorientação para evitar o conflito entre as duas coisas falsas?” Em primeiro lugar, está consciente de que está em conflito, antes de querer saber como afastar-se dele? Ou, estando consciente do conflito, está apenas a procurar um refúgio, um abrigo que não crie mais conflito? Portanto vamos decidir se quer um abrigo, uma zona de segurança, que deixe de produzir conflito, se quer fugir do conflito presente para entrar numa situação na qual não haja conflito; ou se não tem conhecimento, não está consciente deste conflito em que existe. Se não está consciente do conflito, isto é, da batalha que tem lugar entre o ego e o meio, se está inconsciente dessa batalha, então porque procura mais remédios? Permaneça inconsciente. Deixe que as próprias condições produzam o necessário conflito, sem se precipitar atrás delas, invocando artificialmente, falsamente, um conflito que não existe na sua mente e no seu coração. E você cria artificialmente um conflito porque tem medo de deixar escapar alguma coisa. A vida não o deixa escapar. Se pensa que deixa, há algo de errado consigo. Talvez seja neurótico, anormal.
Se está em conflito, não me pedirá um método. Se eu lhe fosse dar um método você simplesmente estaria a disciplinar-se de acordo com esse método, tentando imitar um ideal, um padrão que eu estabeleci, e por esse motivo estaria a destruir a sua própria inteligência. Ao passo que se estiver realmente consciente desse conflito, nessa consciência o sofrimento tornar-se-á intenso e nessa agudeza, nessa intensidade, você dissolverá a causa do sofrimento, que é a falta de compreensão do meio.
Vocês sabem que perdemos todo o sentido de viver normalmente, simplesmente, directamente. Para regressarem a essa normalidade, a essa simplicidade, a essa rectidão, não podem seguir métodos, não podem simplesmente tornar-se máquinas automáticas; e receio que a maior parte de nós esteja a procurar métodos porque pensamos que através deles alcançaremos o sentido de plenitude, estabilidade e permanência. Para mim os métodos conduzem a lenta estagnação e decadência e nada têm a ver com a verdadeira espiritualidade, que é, afinal, a soma da inteligência.
Pergunta: Fala da necessidade de uma revolução drástica na vida do indivíduo. Se ele não quiser revolucionar o seu meio pessoal exterior por causa do sofrimento que causaria à sua família e amigos, a revolução interior conduzi-lo-ia à ausência de todo o conflito?
Krishnamurti: Em primeiro lugar, senhores, vocês não sentem também que é necessária uma revolução drástica na vida do indivíduo? Ou estão simplesmente satisfeitos com as coisas como elas estão, com as vossas ideias de progresso, evolução e o vosso desejo de consecução, com as vossas ânsias e prazeres variáveis? Sabem, no momento em que começarem a pensar, em que realmente começarem a pensar, têm que ter este desejo ardente de uma mudança drástica, de uma revolução drástica, de uma completa reorientação do pensamento. Agora, se sentirem que isso é necessário, então nem a família nem os amigos se intrometerão no vosso caminho. Nessa altura não haverá nem uma revolução exterior nem uma revolução interior; haverá só revolução, mudança. Mas no momento em que a começarem a limitar dizendo, “Não devo magoar a minha família, os meus amigos, o meu sacerdote, o meu explorador capitalista ou o meu explorador estatal”, então não vêem realmente a necessidade de uma mudança radical, procuram simplesmente uma mudança de meio. Há nisso apenas uma letargia que cria mais meios falsos e continua o conflito.
Penso que damos a muito falsa desculpa de que não devemos magoar as nossas famílias e os nossos amigos. Vocês sabem que quando querem fazer alguma coisa vital, fazem-na, independentemente da vossa família e amigos, não sabem? Nessa altura não têm em consideração que os vão magoar. Está para além do vosso controlo; sentem tão intensamente, pensam tão completamente que isso os leva para além da limitação dos círculos familiares, das escravidões secretas. Mas só começam a ter em consideração a família, os amigos, os ideais, as crenças, as tradições, a ordem estabelecida das coisas, quando ainda se apegam a uma segurança específica, quando não há essa riqueza interior, mas simplesmente dependência da estimulação externa para essa riqueza interior. Portanto se houver essa plena consciência do sofrimento, provocada pelo conflito, nessa altura não estarão limitados pela dependência em qualquer ortodoxia específica, pela dependência nos amigos ou na família. Querem descobrir a causa desse sofrimento, querem descobrir o significado do meio que cria o conflito; então não há nisso personalidade, não há o pensamento limitado do “eu”. Mas é somente quando vocês se apegam a esse pensamento limitado do “eu” que têm que ter em consideração que distância querem percorrer e que distância não querem percorrer.
Sem dúvida que a verdade, ou essa divindade da compreensão, não se encontra pelo apego seja à família, à tradição ou ao hábito. Só se encontra quando estiverem completamente despidos, despojados das vossas ânsias, esperanças, seguranças; e nessa franca simplicidade há a riqueza da vida.
Pergunta: Pode explicar porque é que o meio começou por ser falso em vez de ser verdadeiro? Qual é a origem de toda esta confusão e infortúnio?
Krishnamurti: Quem acham que criou o meio? Algum Deus misterioso? Por favor, esperem um momento; quem criou o meio, a estrutura social, a económica, a estrutura religiosa? Nós. Cada um contribuiu individualmente, até que se tornou colectiva, e o indivíduo que ajudou a criar o colectivo está agora perdido no colectivo, porque ele se tornou o seu molde, o seu meio. Através do desejo de segurança, financeira, moral e espiritual, vocês criaram um meio capitalista em que há nacionalidade, diferença de classes e exploração. Nós criámo-lo, vocês e eu. Está coisa não nasceu miraculosamente. Criarão de novo outro sistema capitalista, aquisitivo, de um tipo diferente, com um matiz diferente, com uma cor diferente, desde que estejam à procura de segurança. Podem abolir o padrão presente, mas enquanto houver possessividade, criarão um outro estado capitalista, com uma nova fraseologia, uma nova gíria.
E a mesma coisa se aplica às religiões, com todas as suas cerimónias absurdas, explorações, medos. Quem as criou? Vocês e eu. Através dos séculos criámos estas coisas e entregamo-nos a elas através do medo. É o indivíduo que tem criado meios falsos em toda a parte. E tornou-se um escravo, e essa falsa situação resultou numa falsa procura de segurança dessa auto-consciência a que chamam o “eu”, e por isso a constante batalha entre o “eu” e o meio falso.
Querem saber quem criou este meio e toda esta terrível confusão e aflição porque querem um redentor que os erga dessa aflição e os coloque num novo paraíso. Apegando-se a todos os vossos preconceitos, esperanças, medos e preferências particulares, individualmente criaram este meio, portanto individualmente têm que o deitar abaixo e não esperar que chegue um sistema para acabar com ele. Provavelmente virá um sistema que acabe com ele e nessa altura vocês simplesmente se tornarão escravos dele. O sistema comunista poderá chegar, e nessa altura provavelmente usarão novas palavras, mas terão as mesmas reacções, só que de maneira diferente, com um ritmo diferente.
Eis porque eu disse no outro dia que se o meio está a conduzi-los a uma determinada direcção, deixa de ser recto. Só há rectidão quando há acção nascida da compreensão desse meio.
Portanto temos que nos tornar conscientes individualmente. Garanto-lhes, criarão então individualmente algo imenso, não uma sociedade que está simplesmente a defender um ideal e portanto a decair, mas uma sociedade que está constantemente em movimento, não chegando a uma culminação e morrendo. Os indivíduos estabelecem uma meta, esforçam-se pela sua consecução, e após terem alcançado, sucumbem. Tentam durante todo o tempo alcançar alguma meta e ficar neste estádio que atingiram. Tal como o indivíduo, assim o estado – o estado tenta durante todo o tempo alcançar um ideal, uma meta. Ao passo que para mim o indivíduo tem que estar em constante movimento, têm que estar sempre a devir, não procurando uma culminação, não perseguindo um ideal. Então a auto-expressão, que é a sociedade, estará sempre em constante movimento.
Pergunta: Considera que o karma é a interacção entre o falso meio e o falso “eu”?
Krishnamurti: Sabe que karma é uma palavra sânscrita que significa agir, fazer, trabalhar, e também implica causa e efeito. Ora karma é a dependência, a reacção nascida do meio que a mente não compreendeu. Conforme tentei explicar ontem, se não compreendermos uma situação particular, a mente é naturalmente sobrecarregada com essa situação, com essa falta de compreensão; e com essa falta de compreensão funcionamos e agimos, e em consequência criamos mais sobrecarga, maiores limitações.
Portanto tem que se descobrir o que cria esta falta de compreensão, o que impede o indivíduo de obter o significado total do meio, seja o meio passado ou o presente. E para descobrir esse significado, a mente tem que estar realmente livre de preconceito. Estar realmente livre de uma ideia preconcebida, de um temperamento, de uma deformação é uma das coisas mais difíceis; e abordar o meio com uma abertura pura, com rectidão, exige muita percepção. A maior parte das mentes são influenciadas através da vaidade, através do desejo de impressionar os outros sendo alguém, ou através do desejo de alcançar a verdade, ou de fugir do seu meio, ou de expandirem a sua própria consciência – só que chamam a isto um nome espiritual especial – ou através dos seus preconceitos nacionais. Todos estes desejos impedem a mente de perceber directamente o pleno valor do meio; e como a maior parte das mentes são preconceituosas, a primeira coisa que uma pessoa se deve dar conta é das suas próprias limitações. E quando começam a estar conscientes, há conflito nessa consciência. Quando sabem que são na realidade brutalmente orgulhosos ou pretensiosos, na própria consciência da presunção ela começa a dissipar-se, porque percebem o seu absurdo; mas se começarem simplesmente a encobri-la, ela cria mais doenças, mais reacções falsas.
Portanto para viver agora cada momento sem o fardo do passado ou do presente, sem essa memória castradora criada pela falta de compreensão, a mente tem que enfrentar sempre as coisas de uma maneira nova. É fatal enfrentar a vida com o fardo da certeza, com a presunção do conhecimento, porque, afinal, o conhecimento é apenas uma coisa do passado. Portanto quando ganharem essa vida com frescura, nessa altura saberão o que é viver sem conflito, sem este contínuo e tenso esforço. Nessa altura irão longe torrentes da vida.