Esta manhã vou responder a perguntas.
Pergunta: Se bem o compreendo, quer dizer que o ego, feito de efeitos do meio, é a casca visível, rodeando um miolo único e imortal? Esse miolo cresce ou murcha ou modifica?
Krishnamurti: Sabe, alguns de vocês trazem o espírito da especulação, o espírito do jogo para o vosso questionamento no que diz respeito ao que é a verdade. Tal como vocês especulam no mercado de acções para ficarem ricos rapidamente, e assim explorar os outros, enganar os outros, através deste hábito pernicioso de jogar, também uma mente filosófica se satisfaz no seu hábito de especulação. Com essa atitude de mente você começa a interrogar-se se há uma alma imortal e duradoura, uma entidade ou ser que é completo em si mesmo, ou uma individualidade sempre crescente, em desenvolvimento, em expansão.
Ora bem, porque é que quer saber? O que reside por trás desta inquirição, deste espírito de especulação? Não seria melhor não inquirir, não especular, mas antes indagar se o meio cria esse conflito que resulta nessa consciência individual de que falei ontem? Não seria isso melhor do que apenas especular, porque toda a especulação sobre estes assuntos tem que ser absolutamente falsa, uma vez que não se pode fazer ideia, nesse estado de limitação, nesse estado de conflito entre o resultado do meio e o próprio meio, não se pode fazer ideia dessa realidade, dessa vida eterna que á a verdade. Se disserem que é uma consciência sempre crescente, sempre em expansão, ou que é completa em si mesmo, eterna, eu penso que está incorrecto, porque não é nenhuma destas duas coisas do ponto de vista daquilo que é a inteligência. Se estão apenas a especular para descobrir se esse ser se desenvolve, ou existe eternamente, então o resultado será um padrão, um conceito metafísico ou filosófico de acordo com o qual, consciente ou inconscientemente, moldarão as vossas vidas. Portanto um tal padrão será apenas um escape, um escape desse conflito que é o único que pode libertar o homem da sua especulação, do seu jogo.
Portanto, se se tornarem conscientes do conflito, nessa altura verão na sua intensidade o significado da eternidade; isto é, quando começam a libertar a mente e o coração de todo o conflito há inteligência, e então a intemporalidade tem um significado completamente diferente. É uma realização, não um desenvolvimento. Está sempre a devir, não em direcção a um fim, mas inerentemente. Podem compreender isto intelectualmente, superficialmente, mas não podem compreendê-lo fundamentalmente em toda a sua profundidade, riqueza, se a mente e o coração estiverem apenas a procurar um refúgio metafísico, ou a sentir prazer nas especulações filosóficas.
Pergunta: Se o eterno é inteligência e por isso verdade, então não é incomodado pelo falso que é o “eu” e o meio. Similarmente, não há causa para o falso, o “eu”, o meio, estar preocupado com o eterno, a verdade, a inteligência; porque, conforme declarou repetidamente, um não pode ser alcançado pelo outro, por muito grande que seja o esforço. E também parece que ao longo dos anos da vida humana, o eterno não fez grande progresso na dissipação do falso e na criação do verdadeiro. Como parecem não estar relacionados segundo diz, porque não deixar o eterno ser o eterno, e deixar o falso piorar se assim o quiser? Numa palavra, porquê incomodarmo-nos com alguma coisa?
Krishnamurti: Porquê incomodarmo-nos com isso? Porque se incomoda sobre alguma coisa na vida? Porque há conflito, porque o homem está preso no sofrimento, na dor, nas alegrias transitórias, nas inumeráveis lutas, nos tacteios inúteis, nas fantasias e nos romantismos subtis que estão sempre a desmoronar-se; porque há uma luta contínua na mente, começam a inquirir porque é que esta luta existe. Se não há luta, porquê incomodar-se com ela? Eu concordo bastante com o interlocutor, porquê incomodarmo-nos por alguma coisa se não existe esta luta, esta luta de ganhar dinheiro e de possuir dinheiro, a luta de se ajustarem aos vossos semelhantes, ao meio e às condições e às exigências, a luta de serem vocês próprios, de expressarem o que sentem. Se sentem que não há luta, então não se incomodem, deixem isso. Mas eu penso que não há um único ser humano no mundo – excepto talvez os selvagens, em lugares remotos distantes da civilização – que não esteja em luta, na procura incessante de segurança, de conforto, conduzido pelo medo. Nessa luta o homem começa a criar ideias relativas à verdade como maneiras de fuga.
Eu digo que há um modo de vida em que o conflito cessa totalmente, uma maneira de viver espontaneamente, naturalmente, extaticamente. Isto para mim é um facto, não uma teoria. E gostaria de ajudar aqueles que estão em sofrimento, que não estão à procura de uma finalidade, que estão a tentar descobrir a causa deste conflito; aqueles que não estão à procura de uma solução – porque não há solução –, a despertar em si essa inteligência que dissipa, através da compreensão, a causa do conflito. Mas se não estão em conflito então nada mais há a dizer. Nessa altura terão cessado de pensar, terão cessado de viver, porque encontraram apenas uma segurança, um refúgio longe deste movimento constante da vida, que, sem compreensão, se torna num conflito, mas que, quando compreendida, se torna um prazer, um êxtase, um movimento contínuo, intemporal; e isso é a eternidade.
Portanto o que é o conflito? O conflito, como disse, só pode existir entre duas coisas falsas, o conflito não pode existir entre a compreensão e a ignorância, o conflito não pode existir entre a verdade e aquilo que é falso. Portanto todo o conflito do homem, a sua dor e o seu sofrimento, reside entre duas coisas falsas, entre aquilo que ele considera o essencial e o não essencial. Vamos considerar o que são estas duas coisas falsas; não o que foi criado primeiro, não a velha questão: o que apareceu primeiro – a galinha ou o ovo? Isso é mais uma vez uma preguiça metafísica da mente especulativa que não está realmente a pensar.
Enquanto não compreendermos o verdadeiro valor do meio que cria o indivíduo que batalha contra ele, tem que haver conflito, tem que haver restrição e limitação sempre crescentes. Por isso a acção, tal como disse ontem, cria mais barreiras. E a mente e o coração – que para mim são a mesma coisa, divido-as por conveniência de discurso – são debilitadas e nubladas pela memória, e a memória é o resultado nascido da procura de segurança, é o resultado do ajustamento ao meio, e essa memória está continuamente a nublar a mente que é em si inteligência, e portanto dividindo-a da inteligência; essa memória cria a falta de compreensão, essa memória cria o conflito entre a mente e o meio. Mas se puderem abordar o meio de uma maneira nova e não sobrecarregada por esta memória do passado, que é apenas um ajustamento cuidadoso e por esse motivo apenas um aviso; se forem essa inteligência, essa mente que se renova a si mesma continuamente, não ajustando-se, não se modificando a uma condição, mas indo ao encontro de tudo de uma maneira nova, tal como o sol numa nova manhã, tal como as estrelas da noite, então nessa frescura, nessa vivacidade, chega a compreensão de todas as coisas. Em consequência, o conflito cessa completamente, porque a inteligência e o conflito não podem coexistir. A desarmonia cessa quando a inteligência está a funcionar na sua plenitude.
Pergunta: Quando uma pessoa que amo, sem apego ou ânsia, vem aos meus pensamento e eu resido neles agradavelmente durante um momento, é isto que desacredita como não viver plenamente o presente?
Krishnamurti: O que é viver plenamente no presente? Tentarei de novo explicar o que quero dizer. Uma mente que está em conflito, em luta, está continuamente à procura de um escape; ou a memória do passado inconscientemente se precipita na mente, ou a mente deliberadamente se volta para o passado e vive o prazer desse passado, o que é uma forma de fuga. Ou então a mente em conflito, em luta, que está sem compreensão, procura um futuro, um futuro a que chamam uma crença, uma meta, uma culminação, uma consecução, um sucesso, e foge para isso. É a função da memória ser astuta e fugir do presente. Este processo de olhar para trás é apenas um dos truques da memória a que chamam auto-análise, que apenas perpetua a memória, e que por isso limita e confina a mente, banindo a inteligência.
Existem portanto estas várias formas de fuga, e quando a mente cessou de fugir através da memória, quando a memória deixou de nublar a mente e o coração, há então este êxtase de viver no presente. Isto só pode existir quando a mente já não tira prazer do passado e do futuro, quando a mente não cria divisão; por outras palavras, quando essa inteligência suprema que é verdade, que é beleza, que é o próprio amor, funciona normalmente, sem esforço – então, nesse estado, a inteligência é intemporal, e não existe então este medo de não viver no presente.
Pergunta: Quando o amor está liberto de toda a possessividade, isto não resulta necessariamente em ascetismo e por isso anormalidade?
Krishnamurti: Se estivesse livre da possessividade, não poria esta questão. Antes de ter chegado a essa coisa imensa, já está com medo, e está por isso a construir um muro protector a que chama ascetismo. Vamos portanto considerar primeiro, não se será ascetismo e por isso anormalidade, quando está livre da possessividade, mas se essa possessividade cria ela mesma a luta e produz o anormal.
Porque é que existe esta ideia de posse? Não nasce da insuficiência, da incompletude? E devido a essa insuficiência, o sexo e outros problemas assumem grande importância, e por isso a possessividade representa um papel tremendo na vida das pessoas. Na plenitude, que é a própria inteligência, não há anormalidade. Mas sendo insuficientes, incompletos, conhecendo a pobreza, o vazio, a solidão absoluta e a superficialidade do pensamento e da emoção, dependemos das outras pessoas, dos livros, da literatura, das ideias, da filosofia para enriquecer as nossas vidas, e assim começamos a adquirir, a acumular. Este processo de acumulação para orientação no presente é apenas o funcionamento da memória que depende do conhecimento, que é do passado e que está portanto morto.
Tal como um homem de muitas posses procura conforto nas suas coisas, assim o homem de pobreza, de superficialidade, de incompletude, conta com a posse do seu amigo, da sua mulher ou do seu amor; e desta possessividade chega a batalha e a constante tortura da mente e do coração. E quando há ausência destes conflitos, o que só pode acontecer através da consciência, através da compreensão do meio, e não através do esforço – quando há esta liberdade, esta compreensão, não há então possessividade e por isso não há anormalidade. Afinal, o asceta é aquele que se afasta de vida porque não a compreende. Ele foge da vida, da vida com todas as suas expressões; ao passo que a inteligência não procura fugir de nada, porque nada há para pôr de lado; a inteligência é completa, e nessa plenitude não há divisão.
Pergunta: Se os sacerdotes são exploradores, porque é que Cristo fundou a sucessão apostólica e Buda a sua sangha?
Krishnamurti: Em primeiro lugar, como é que sabem? Foi-lhes dito, leram-no nos livros. Como sabem que não são invenções dos sacerdotes para sua própria afirmação, para seu próprio benefício? Uma autoridade amadurecida através da bruma dos tempos torna-se invulnerável, e então o homem aceita essa autoridade como sendo definitiva. Porquê aceitar o Cristo, ou o Buda, ou qualquer pessoa, incluindo eu? Vamos antes indagar se os sacerdotes são exploradores, não meramente aceitar que o não são, simplesmente porque se supõe que Cristo tenha estabelecido a sucessão apostólica. Esse é somente o hábito de uma mente preguiçosa que quer resolver tudo pela autoridade, pelo precedente, dizendo isso só porque alguém o disse, e por isso deve ser verdade, não importando se esse alguém é mesquinho ou eminente.
Vamos portanto descobrir. Conforme tentei explicar ontem, as religiões são o resultado da procura de segurança pelo homem. E por isso quando uma mente está à procura de refúgio, de certeza, um lugar onde possa descansar, uma garantia de imortalidade, quando uma mente procura isto, têm por conseguinte que existir aqueles que confortam e satisfazem a mente. Podem chamar-lhes sacerdotes, exploradores, mediadores, swamis; todos eles são do mesmo tipo. Ora bem, quando vocês procuram refúgio, há sempre o medo de o perderem; quando procuram ganho, naturalmente que com ele aparece o medo da perda. Portanto o medo da perda condu-los continuamente a esta procura de segurança, o que para mim é absolutamente falso. E portanto uma causa falsa gera um produto falso; e este produto é o sacerdote, o swami, o explorador.
Para que é que querem de todo um sacerdote? Como a pessoa conveniente para os casar ou para os enterrar, ou para lhes dar uma bênção que lavará os vossos chamados pecados? Não existe tal coisa como o pecado – existe somente a falta de compreensão, e essa falta de compreensão não pode ser lavada por qualquer sacerdote, quer ele reivindique a sucessão apostólica ou não. Só a inteligência os pode libertar da falta de compreensão, não as bênçãos de um sacerdote, ou ir a um altar ou a um túmulo.
Vão a um sacerdote porque ele vai despertar a vossa inteligência, porque lhes vai dar estímulo? Então tratem disto como tratam da bebida. Se são dependentes da bebida, é uma pena, porque toda a dependência revela uma falta de inteligência, e deverá haver então sofrimento. E o homem é continuamente apanhado neste sofrimento, embora não veja nem vá ver a causa; ele multiplica por isso meios e maneiras de fuga. Mas a causa é a própria procura de segurança, desta certeza que não existe.
A mente que é inteligente não procura segurança, porque não há lugar, não há residência onde possa descansar. A inteligência é em si tranquilidade, criatividade, e enquanto não houver essa inteligência tem que haver sofrimento. Fugir da causa do sofrimento não lhes vai dar essa inteligência; pelo contrário, torna-os mais cegos, mais ignorantes; e sofrerão cada vez mais. O que lhes dá imediatamente, directamente, percepção é essa intensidade plena de consciência no presente. Compreender o meio, seja ele qual for, é inteligência. Então estarão realmente para além de todos os sacerdotes, então estarão para além de todas as limitações, para além dos próprios deuses.
Pergunta: Refere-se a duas formas de acção; a reacção ao meio, que cria conflito, e a penetração do meio, que traz libertação do conflito. Compreendo a primeira, mas não a segunda. O que quer dizer pela penetração do meio?
Krishnamurti: Há reacção ao meio quando a mente não compreende o meio, e age sem compreensão, aumentando mais, portanto, a limitação do meio. Essa é uma forma de acção na qual está presa a maior parte das pessoas. Reagem a um meio que cria conflito, e para fugir desse conflito criam outro meio que esperam lhes traga paz, o que é apenas agir no meio sem compreender que o meio pode mudar. Esta é uma forma de acção.
Depois há a outra que é compreender o meio e agir, o que não significa que compreendam primeiro e ajam depois, mas a própria compreensão é acção; isto é, é sem cálculo, modificação, ajustamento, que são funções da memória. Vocês vêem o meio como ele é, com todo o seu significado, no espelho da inteligência, e nessa espontaneidade de acção há liberdade. Afinal, o que é a liberdade? Mover-se para que não haja barreiras, não deixar barreiras para trás, nem criá-las há medida que avançam. Ora a criação de barreiras, a criação do meio é a função da memória, que é auto-consciência, que divide a mente da inteligência. Pondo as coisas de maneira diferente, a acção entre duas coisas falsas, o meio e o resultado do meio, a acção entre estes, tem sempre que criar, tem sempre que aumentar as barreiras e em consequência diminuir, banir a inteligência. Ao passo que, se reconhecerem isto – o reconhecimento não é uma questão de intelecto, o reconhecimento tem que nascer de todo o vosso ser – então nessa plena consciência tem lugar uma acção diferente, que não está sobrecarregada pela memória – e já expliquei o que quero dizer com memória. Por isso cada movimento do pensamento e da emoção toma um matiz diferente, um significado diferente. Então a inteligência não é uma divisão entre o objecto que é o meio e o criador a que chamam o ego. Então a inteligência não divide e é portanto ela própria a espontaneidade da acção.