Darei uma breve palestra e depois responderei às questões que me foram colocadas.
Tratei ontem de toda a ideia do medo e de como ele necessita de compulsão; esta manhã vou tratar de novo, brevemente, da maneira em que a incompletude gera compulsão. Onde há incompletude há o desejo de orientação, de autoridade, daquela influência modeladora que se tornou tradição, tradição essa em que já não é pensamento mas que actua simplesmente como guia. Ao passo que para mim a tradição deveria ser um meio de despertar o pensamento, não de o diminuir, de o eliminar. Onde há insuficiência, tem que haver compulsão; e desta compulsão nasce um modo de vida específico ou um método de acção, e portanto mais conflito, mais luta, mais dor. Isto é, quando se sente, consciente ou inconscientemente, a mordacidade da insuficiência, tem que haver conflito, tem que haver sofrimento e um sentido de superficialidade e de vazio e de absoluta futilidade da vida. Pode não se estar consciente desta insuficiência, ou pode-se estar consciente dela.
Portanto onde há insuficiência, qual é o processo da mente? Que acontece quando uma pessoa se torna consciente deste vazio, desta superficialidade dentro do seu eu? Que fazemos quando sentimos, quando nos tornamos conscientes deste vazio, deste vácuo em nós? Desejamos preencher esse vazio, e procuramos um padrão, um molde criado por outro; imitamos, seguimos esse padrão, disciplinamo-nos nesse molde que outro implantou, esperando poder assim preencher este vazio, esta superficialidade da qual nos tornamos mais ou menos conscientes.
Esse padrão, esse molde, começa a influenciar as nossas vidas, forçando-nos a ajustar-nos, a ajustar as nossas mentes, os nossos corações e as nossas acções a esse padrão específico. Portanto começamos a viver, não dentro da nossa própria experiência, dentro da nossa própria compreensão, mas dentro da expressão, das ideias, das limitações da experiência de outros. É isto que acontece. Se realmente pensarem nisso um momento, verão que começamos a rejeitar as nossas próprias experiências particulares e a compreensão dessas experiências, porque sentimos essa insuficiência, e desviamo-nos para imitar, para copiar e para viver através da experiência de outros. E quando contamos com a experiência de outro e não vivemos pela nossa própria compreensão, naturalmente que há cada vez mais insuficiência, cada vez mais conflito; mas mesmo que digamos a nós próprios que temos que viver pela nossa própria experiência, pela nossa própria compreensão, de novo transformamos isso num ideal, num outro padrão, e segundo esse padrão moldamos as nossas vidas.
Suponham que dizem para vocês próprios, “Não vou depender da experiência de outro, mas viverei da minha”, então sem dúvida estão já a criar um molde para o vosso ajustamento. Quando dizem, “Viverei da minha própria experiência”, já estão a colocar uma limitação no vosso pensamento, porque esta ideia de que devem viver pela vossa própria compreensão gera complacência, que é apenas um ajustamento ineficaz que conduz à estagnação. Vocês sabem que a maior parte das pessoas diz que rejeitará o padrão externo que estão constantemente a imitar, e que tentará viver dentro da sua própria compreensão. Dizem, “Faremos só o que compreendermos”; e em consequência criam um outro padrão que introduzem nas suas vidas. E depois o que acontece? Tornam-se cada vez mais satisfeitas; e portanto decaem lentamente.
Contamos, para a dissipação desta insuficiência, com a mera acção, porque onde há insuficiência e vazio, o nosso único desejo é preencher esse vazio e portanto contamos com a acção apenas para o preencher. Mais uma vez, que fazemos quando contamos com uma acção para completar a insuficiência? Estamos apenas a tentar, através da acumulação, preencher esse vazio e portanto não estamos a tentar descobrir qual é a causa da insuficiência.
Por favor, quando sentem que são insuficientes, que acontece? Tentam preencher essa insuficiência, tentam tornar-se ricos, e dizem que para se tornarem ricos, para se tornarem completos, têm que contar com outros, portanto começam a ajustar os vossos próprios pensamentos e sentimentos às ideias e experiências de outros. Mas isto não lhes dá riqueza, isto não ocasiona plenitude ou realização. E então dizem para vocês próprios, “Tentarei viver pela minha própria compreensão”, o que tem os seus perigos, como referi, levando à complacência; e se apenas contarem com a acção, dizendo, “Sairei para o mundo e agirei para me tornar rico, completo”, estão de novo, pela substituição, a tentar preencher aquele vazio. Ao passo que se se tornarem conscientes através da acção, nessa altura descobrirão a causa da insuficiência. Isto é, em vez de procurarem a plenitude, geram acção através da inteligência.
Ora bem, o que á acção? É afinal o que pensamos e sentimos. E enquanto não tiverem consciência do vosso próprio pensamento, do vosso próprio sentimento, tem que haver insuficiência, e nenhuma actividade externa os reabastecerá. Isto é, somente a inteligência pode dissipar este vazio, e não a acumulação; e a inteligência é, como referi, a harmonia perfeita da mente e do coração. Portanto se compreenderem o funcionamento do vosso próprio pensamento e da vossa própria emoção, e consequentemente nessa acção se tornarem conscientes, então há inteligência, que dissipa a insuficiência e que não tenta substituí-la pela suficiência, pela plenitude, porque a inteligência é em si plenitude.
Portanto quando há plenitude não pode haver compulsão. Mas a desarmonia, a incompletude, gera separação entre mente e coração. Não é assim? O que é desarmonia? É a consciência da divisão entre o que pensam e o que sentem, e nessa distinção há, por conseguinte, conflito. Ao passo que para mim, pensar e sentir é o mesmo. Tendo portanto conflito e desarmonia, e tendo dividido a mente dos sentimentos, então mais separamos e dividimos a mente e o coração da inteligência – inteligência que para mim é verdade, beleza e amor. Isto é, o conflito, que tal como expliquei, é a luta entre o resultado do meio, que é a consciência do “eu”, e o próprio meio – esse conflito entre o resultado do meio e o próprio meio provoca luta, o que produz desarmonia. Dividimos a mente da emoção, e tendo-o feito, continuamos todavia a dividir mais a inteligência da mente e do coração; ao passo que para mim eles são um, inteligência é pensamento e emoção em harmonia perfeita, e por isso a inteligência é em si beleza, inerentemente, não uma coisa que se procure.
Quando há grande conflito, grande desarmonia, quando há a plena consciência do vazio, então surge a procura da beleza, da verdade e do amor para influenciar e dirigir as nossas vidas. Isto é, estando conscientes desse vazio, exteriorizam a beleza na natureza, na arte, na música, e começam a rodear-se artificialmente destas expressões para que elas possam adornar a vossa vida, de influências para o refinamento, a cultura e a harmonia. Não é esse o processo por que passa a mente? Conforme disse, através do conflito dividimos a inteligência da mente e do coração, e depois chega a consciência dessa insuficiência, esse vazio. Depois começamos a procurar a felicidade, a plenitude, na arte, na música, na natureza, nos ideais religiosos, e estes começam a influenciar as nossas vidas, a controlar, a dominar e a guiar-nos, e nós pensamos que desta maneira chegaremos a essa plenitude; através da acumulação de influências e experiências positivas esperamos poder vencer a desarmonia e o conflito. Isto apenas se distancia cada vez mais disso que é a inteligência, e portanto da verdade, da beleza e do amor, que é a própria plenitude.
Isto é, no nosso sentimento de insuficiência, de incompletude, começamos a acumular, esperando tornar-nos completos através desta recolha de experiências e da satisfação nas ideias e nos padrões dos outros. Ao passo que para mim a incompletude desaparece quando há inteligência, e a própria inteligência é beleza e verdade. Não conseguimos ver isto enquanto a mente e o coração estiverem divididos, e eles dividem-se através do conflito. Separamos a própria inteligência da mente e do coração, e este processo prossegue continuamente, este processo de separação e a procura de realização. Mas a realização reside na própria inteligência, e despertar essa inteligência é descobrir o que gera desarmonia e portanto divisão.
O que é que cria desarmonia nas nossas vidas? A falta de compreensão do meio, do nosso ambiente. Quando começam a questionar e a compreender o meio, o seu pleno valor e significado, não tentando imitar ou segui-lo ou ajustar-se a ele ou fugir dele, então nasce a inteligência, que é beleza, verdade e amor.
Pergunta: Na sua opinião, seria melhor para mim tornar-me uma diaconisa da Igreja Episcopal Protestante, ou poderia ser mais útil ao mundo permanecendo o que sou?
Krishnamurti: Suponho que a interlocutora quer saber como ajudar o mundo, e não se deve associar-se a uma ou outra igreja, o que é de pouca importância.
Como é que se ajuda o mundo? Certamente, não criando mais divisões sectárias, não criando mais nacionalismo. O nacionalismo é, afinal, o desenvolvimento, a realização da exploração económica, e as religiões são o resultado cristalizado de certos conjuntos de crenças e credos. Se se quiser, realmente, ajudar o mundo, não pode ser, do meu ponto de vista, através de qualquer religião organizada, seja o Cristianismo com as suas inúmeras seitas, ou o Hinduísmo com as suas inúmeras seitas, ou qualquer outra religião. Estas são na realidade divisões perniciosas da mente, da humanidade. E contudo pensamos que se todo o mundo se tornasse Cristão, então haveria a fraternidade das religiões, e a unidade da vida. Para mim a religião é o resultado falso de uma causa falsa, sendo a causa o conflito, e a religião apenas um meio de fuga desse conflito. Portanto, quanto mais desenvolverem e fortalecerem as divisões sectárias da religião, menos verdadeira fraternidade haverá; e quanto mais fortalecerem o nacionalismo, menos unidade do homem haverá.
Pergunta: A ganância é o produto do meio ou da natureza humana?
Krishnamurti: O que é a natureza humana? Não é ela própria o produto do meio? Porquê dividi-los? Existe tal coisa como a natureza humana à parte do meio? Alguns acreditam que a distinção entre a natureza humana e o meio é artificial, porque alterando o meio, dizem eles que a natureza humana pode ser mudada e moldada. Afinal, a ganância é apenas o resultado do meio falso, portanto da própria natureza humana.
Quando o indivíduo tenta compreender o seu meio, as condições em que vive, então, porque há inteligência, não pode haver ganância. Então a ganância não seria um vício ou um pecado a vencer. Vocês não compreendem e não alteram o meio que produz a ganância, mas receiam o resultado e chamam-lhe pecado. Mas a mera procura de um meio perfeito, portanto de uma natureza humana perfeita, não pode produzir inteligência; mas onde há inteligência há a compreensão do meio, e por isso ausência das suas reacções. Ora o meio ou as sociedades forçam-nos, impelem-nos a ser auto-protectores. Mas se começarem a compreender o meio que produz a ganância, nessa altura vendo o significado do meio, a ganância desaparece totalmente, e não a substituirão então pelo seu oposto.
Pergunta: Se bem o compreendo, o conflito cessa quando é enfrentado sem o desejo de fugir. Amo alguém que não me ama, e estou só e extremamente infeliz. Penso honestamente que estou a enfrentar o meu conflito, e não estou à procura de um escape; mas continuo só e extremamente infeliz, Portanto o que diz não resultou. Pode dizer-me porquê?
Krishnamurti: Talvez esteja apenas a tentar usar as minhas palavras como um meio de fuga; talvez esteja a usar as minhas palavras, as minhas ideias, para preencher o seu vazio.
Ora bem, diz que enfrentou o conflito. Pergunto-me se realmente o fez. Diz que ama alguém; mas na realidade quer possuir essa pessoa, e por isso há conflito. E porque quer possuir? Porque tem a ideia de que através da posse encontrará a felicidade, a plenitude.
Portanto o interlocutor não enfrentou realmente o problema, ele deseja possuir o outro e por isso está a limitar o seu próprio afecto. Porque afinal, quando realmente se ama alguém, nesse amor há ausência de posse. Temos ocasionalmente, raramente, esse sentido de intenso afecto em que não há possessividade, aquisitividade. E isto traz-nos de volta ao que acabei de dizer na minha palestra, que a possessividade existe enquanto existir insuficiência, a falta de riqueza interior; e essa riqueza interior existe, não nas acumulações, mas na inteligência, na consciência da acção no conflito causado pela falta de compreensão do meio.
Pergunta: O próprio facto das pessoas virem ouvi-lo não faz de si um mestre? E no entanto diz que não devemos ter mestres. Devemos então manter-nos afastados?
Krishnamurti: Devem manter-se afastados se fazem de mim um mestre, se fazem de mim o vosso guia. Se estou a criar nas vossas vidas uma influência, se pelas minhas palavras e acções os estou a forçar a uma determinada acção, então devem manter-se afastados, então o que eu digo é inútil para vocês, não tem significado, então estarão a fazer de mim um mestre que os explora. E nisso não pode haver compreensão, não pode haver riqueza, não pode haver êxtase, nada a não ser mágoa e vazio. Mas se vierem ouvir para que possam descobrir como despertar a inteligência, então não sou o vosso explorador, então sou apenas um incidente, uma experiência que lhes permite penetrar o meio que os mantêm dependentes.
Mas a maior parte das pessoas quer professores, a maior parte das pessoas quer guias, mestres, seja aqui no plano físico ou em qualquer outro plano; querem ser guiadas, ser compelidas, ser influenciadas a fazer bem, a agir correctamente, porque em si próprias não têm compreensão. Não compreendem o meio, não compreendem as várias subtilezas dos seus próprios pensamentos e emoções; por isso sentem que se seguirem outra pessoa chegarão à realização; o que, conforme expliquei ontem, é outra forma de compulsão. Como há aqui compulsão forçando-os a uma determinada rotina porque não há inteligência, procuram assim mestres para serem influenciados, para serem guiados, para serem moldados, e mais uma vez, não há nisso inteligência. A inteligência é verdade, plenitude, beleza e o próprio amor. E nenhum mestre, nenhuma disciplina os pode conduzir a ela; porque todos eles são formas de compulsão, modificações do meio. Só quando compreendem plenamente o significado do meio e vêem o seu valor, somente nessa altura, é que há inteligência.
Pergunta: Como se pode determinar o que preencherá o vazio criado no processo de eliminar a auto-consciência?
Krishnamurti: Senhor, porque quer eliminar a auto-consciência? Porque acha que é importante dissolver a auto-consciência, ou esse “eu”, essa limitação egotista? Porque acha que é necessário? Se disser que é necessário porque procura a felicidade, então essa auto-consciência, essa particularidade limitada do ego continuará. Mas se disser, “Vejo o conflito, a minha mente e o meu coração estão presos nesta desarmonia, mas eu vejo esta desarmonia, que é a falta de compreensão do meio que criou essa auto-consciência”, então não há vazio a preencher. Receio que o interlocutor não tenha compreendido isto de todo.
Por favor deixem-me explicar isto outra vez. O que nós chamamos auto-consciência, ou essa consciência do “eu”, nada mais é que o resultado do meio; isto é, quando a mente e o coração não compreendem o meio, o ambiente, as condições em que se encontra o próprio indivíduo, então através da falta dessa compreensão, gera-se o conflito. A mente está nublada por este conflito, e este conflito contínuo gera a memória que se identifica com a mente e portanto esta ideia do “eu”, da consciência do ego, fica endurecida. Daí mais conflito, sofrimento e dor. Mas a compreensão das circunstâncias, do ambiente, das condições que geram este conflito não chega através da substituição mas através da inteligência, que é mente e amor; essa inteligência que é sempre auto-criativa, que está sempre em movimento. E isso para mim é a eternidade, uma realidade intemporal. Ao passo que vocês procuram a perpetuação dessa consciência que é o resultado do meio, a que chamam o “eu”, e esse “eu” só pode desaparecer quando há a compreensão do meio. Nessa altura a inteligência funciona normalmente, sem restrição ou compulsão. Nessa altura não existe esta luta assustadora, esta procura da beleza, da verdade, esta batalha constante do amor possessivo, porque a inteligência é em si mesma completa.